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Mais um pouquinho de fenomenologia....

A Fenomenologia de Babel


O filme Babel, dirigido por Alejandro González Iñárritu e escrito por Guillermo Arriaga, é a parte final dos dramas de narrativas múltiplas que ficaram conhecidos como “a trilogia da morte”, iniciada com Amores Perros e 21 Gramas. Babel expõe quatro narrativas compostas por diferentes grupos de personagens e diferentes situações, todas interrelacionadas, onde os eventos não são exibidos em uma seqüência natural, sacrificando a clareza. Enquanto este artifício parece ter funcionado com a crítica, já que o filme recebeu muitos prêmios e elogios, uma boa parte da audiência acredita que falta de clareza não é necessariamente uma qualidade, mas sim um meio de criar o efeito “a nova roupa do rei.”
Segundo Edmund Husserl, a fenomenologia é “o estudo reflexivo da essência da consciência da forma que esta é experienciada de uma perspectiva de primeira pessoa.” E foi justamente conversando com meus colegas que fiz algumas das conexões mais interessantes entre as situações exibidas no filme e essa vertente da fenomenologia. Uma colega me relatou algo assim: “Não, vê só, no começo do filme o homem dá uma arma para as crianças, dois guris deste tamanho , uma coisa horrível!” Outro colega me disse que o problema era “a japonesa tarada, porque o pai dela não dava atenção nem para ela e nem para a mãe dela.” Até então eu não havia assistido ao filme, mas guardei esses comentários para ver se concordaria ou não com eles.
Assistido ao filme, notei que o homem que dá uma arma para as crianças é um criador de cabras do Marrocos, e que as crianças são seus filhos. É realmente uma coisa horrível ver um pai entregando uma arma carregada para seus filhos, especialmente para nós, que crescemos em zonas urbanizadas. Mas na área rural, seja no Marrocos ou no Brasil, não é incomum que crianças trabalhem na criação de animais e que saibam manejar armas para proteger a criação dos predadores. Estaria minha colega equivocada no seu comentário? Não, a conseqüência do manejo da arma pelas crianças mostra que, eliminando aquilo que é adicionado ao fato – ou fenômeno – observado, o resultado é horror. Contudo, conhecendo um pouco melhor o ocorrido, desenvolve-se uma compreensão mais ampla sobre aquela situação em particular: a realidade de que crianças de áreas rurais aprendem, de uma forma não muito segura, a usar armas desde muito cedo. No modelo de produção rural familiar, os pais contam com os filhos para ajudar nas tarefas diárias, não como uma forma de explorar o trabalho dessas crianças – elas estão trabalhando para aquilo que lhes será deixado de herança – mas como uma maneira de passar adiante as ferramentas ou o conhecimento necessário para poder manter a herança deixada pelos pais. Seria o caso de condenar o modelo de produção rural familiar ou seria o caso de lidar com o problema em si? Talvez a ONU, ou alguma outra organização internacional, devesse imprimir uma cartilha com algumas regras de segurança para o manejo de armas, tais como: nunca, jamais, em hipótese alguma, apontar a arma para uma pessoa ou para uma habitação onde possam haver pessoas ou para um veículo que possa estar transportando pessoas; e distribuir tal cartilha entre as famílias que vivem dessa maneira em áreas com comércio irregular de armas de grande calibre. Com certeza os pais iriam passar a informação aos filhos, da mesma forma que ensinaram seus filhos a guiar o rebanho e outras funções da vida rural.
Também notei que a japonesa realmente tinha problemas de fundo emocional para lidar com pessoas do sexo masculino, e que o pai da japonesa realmente não era uma pessoa muito dedicada à filha. A observação do meu colega, embora não ficasse completamente clara no filme sendo, portanto, baseada em suposições, não estava completamente errada. Mas seria justo eliminar dessa equação os milhares de anos de história da construção da cultura japonesa? Anos estes que culminaram no surgimento de uma sociedade que, mesmo pelos padrões modernos, possui costumes que ainda são difíceis de aceitar dentro de uma visão ocidental. Uma vez que nós ocidentais reconhecemos o problema crescente de individualismo como modo de vida, pregado pela visão capitalista dominante, os japoneses possuem um individualismo sexista já enraizado em sua cultura e que apenas se fortaleceu com a queda do império e modernização dos modos de produção após o final da Segunda Guerra Mundial. Como exemplo dos extremos comuns aos japoneses podemos citar: a pressão e cobrança por sucesso pessoal; a manutenção da honra familiar que normalmente recai sobre os ombros dos filhos homens e está relacionada ao sucesso pessoal e enraizada até mesmo na religião professada pela maioria dos japoneses; o papel da mulher na sociedade japonesa, onde as mulheres ainda são sujeitas até mesmo a abusos sexuais nos metrôs como forma de uma manifestação da cultura oriental em si, embora admitidamente errada no contexto da atualidade. Seria justo esperar que naquela sociedade um pai agisse de maneira diferente da maneira que agiu o Sr. Wataya em relação às mulheres de sua família? É muito fácil julgar quando temos o sangue latino – indiscutivelmente passional – correndo pelas veias.
O filme, por se passar em locações e realidades tão diversas quanto os Estados Unidos, o Marrocos e o Japão, cruza diversas fronteiras culturais em que julgamentos devem ser feitos com extremo cuidado para não basearem-se no etnocentrismo ou em um viés cultural (cultural bias). Se, por um lado, na raiz da fenomenologia está a experiência imediata como descrita por Wundt, Husserl pega emprestado o conceito de intencionalidade de Betrano para que, livre de pré-conceitos o observador possa usar o discernimento ao avaliar um fenômeno. Foi justamente a falta do discernimento uma das críticas mais duras à introspecção, que levou a necessidade do desenvolvimento de novas vertentes e do desenvolvimento da própria Psicologia que temos o imenso prazer de estudar agora. Em um mundo perfeito, contaríamos com profissionais que fossem treinados para desprezar seus preconceitos e fossem detentores de discernimento suficiente para avaliar caso a caso o passado (background) de seus clientes. Infelizmente muitos ainda preferem pegar o atalho mais fácil e utilizar lentes culturais que enquadrem as realidades apresentadas – ou ainda por apresentar – em sua própria subjetividade. Desta maneira, jamais desenvolvem empatia alguma com seus clientes e jamais entram em contato com a realidade vivenciada por eles.
Eu gostaria de ter um conhecimento mais aprofundado da Gestalt Terapia de Perls para poder encaixar melhor a subjetividade vivenciada por ele no desenvolvimento de suas teorias à fenomenologia da maneira que se deixa transparecer no filme, mas estamos apenas nas primeiras aulas sobre esse teórico que já exerce certo fascínio. Para mim seria mais fácil relacionar com Sigmund Freud, que embora tenha vivido em um local e uma época extremamente etnocentrista, foi capaz de pensar fora-da-caixa e propor que o terapeuta se deixasse absorver pela subjetividade do paciente (ou cliente) pelo método de associação livre – pegando uma carona naquele trem e sentando na janela para observar a paisagem. Para nós, contemporâneos da Era Digital, é valido ressaltar que não é possível fazer isso sem conhecer a cultura e o passado do paciente, coisa especialmente complexa em um mundo globalizado onde as culturas se entrelaçam pela hiper-conectividade.
Ainda que tenhamos dificuldade para assimilar nossas diferenças culturais e pessoais, para melhor compreender as pessoas com as quais deveríamos nos encontrar no exercício da Psicologia, é no mínimo uma obrigação a utilização das ferramentas que nos são entregues por pessoas que foram capazes de ver muito além daquilo que vemos, tais como os teóricos/filósofos da Fenomenologia, para que tentemos alcançar essa sintonia e compreensão. Sem enganos, a vida é dura para as mulheres no Japão, assim como é dura para as crianças em áreas rurais do Marrocos, e até mesmo para o casal americano que tenta resolver suas crises conjugais em uma viagem exótica; é papel do psicólogo endurecer ainda mais essas vidas humanas? Eu acredito que não. Antes devemos entrar em contato com as diferentes realidades para depois tentar ser uma luz guia em direção à “arte do bem viver”. Caso contrário, podemos nos tornar iguais àqueles agentes da imigração do filme, impassíveis diante de qualquer argumentação, meras máquinas de reproduzir comandos e executar ordens. A sociedade já está repleta desse tipo de atitude, e consegue com isso provocar essa verdadeira epidemia de pessoas que não conseguem encarar a vida da maneira que é apresentada, recorrendo a diversas fugas por medo de uma coisa tão simples quanto olhar a si mesmo no espelho da consciência.

Baseado em um trabalho para a disciplina de Fenomenologia.

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